sábado, 23 de abril de 2016

A ciência discreta de preservar a exuberância da arte (Portugal)




LUCÍLIA MONTEIRO

Criado em 2001, o Centro de Conservação e Restauro da Escola das Artes da Universidade Católica do Porto trabalha na preservação e recuperação do património cultural e artístico. Quinze anos depois, o Expresso foi conhecer as rotinas e processos de quem combate a erosão do tempo


Abriu-se a porta. O cheiro a verniz e a tintas propaga-se pelo corredor. Encostadas à parede estão algumas radiografias, não de corpos humanos, mas antes de obras escultóricas. Ali, no Centro de Conservação e Restauro (CCR) da Universidade Católica, os objetos artísticos são examinados e as patologias identificadas. Cura-se a arte. Impede-se a sua morte.

As obras que são sujeitas a intervenções de restauro no CCR podem ser das mais variadas tipologias e estilos, desde arte sacra até objetos contemporâneos, como foi o caso da reabilitação dos painéis monocromáticos do Ângelo Sousa, no Teatro Rivoli.

Neste centro, tudo pode ser revitalizado. Pintura, escultura, cerâmica, mobiliário ou os mais de 30 tocheiros que estão a ser trabalhados numa das oficinas. “Nós somos operadores anónimos da história”, afirma a diretora Carla Felizardo, que há 25 anos trabalha na área e há dez integra o Centro de Conservação e Restauro.

A equipa é pequena, mas versátil, e acolhe vários alunos que concluem os estudos em Conservação e Restauro na Universidade Católica do Porto. Esta é uma área onde cada projeto exige desafios e conhecimentos díspares, o que faz com que o CCR agregue técnicos especializados em várias vertentes. Enquanto Carla Felizardo explicava que “as equipas são sempre formadas em função do trabalho”, ao seu lado, a professora e diretora da Escola das Artes Laura Castro enaltecia que ali se “cruzam químicos, biólogos, historiadores de arte, especialistas em iconografia e os restauradores propriamente ditos”.




LUCÍLIA MONTEIRO

TRATA-SE DE UMA CIÊNCIA E NÃO DE ARTESANATO

Carla Felizardo conta que esta é uma disciplina científica “relativamente recente”, com cerca de 20 anos, e que, antigamente, os técnicos de restauro eram vistos como artesãos, por se tratar de “uma atividade muito estética, muito decorativa, muito ligada aos santeiros… Não era propriamente encarada como uma disciplina científica”. O maior desafio tem sido, por isso, a mudança de “entendimento do que é verdadeiramente a conservação e restauro e quem é que deve realizar essas intervenções”.

Na opinião da diretora do CCR, durante os anos 90 e até ao início do milénio, foram feitas em Portugal várias intervenções de restauro significativas, mas a crise e a recessão económica vieram “travar” um pouco o avanço do setor.

A visita prossegue a sua marcha e numa sala de extração, devidamente isolada, a aluna de mestrado em Conservação e Restauro Marta Freches faz a limpeza química de algumas obras. Bem resguardados, são desinfestados e consolidados objetos artísticos com um maior estado de degradação. No interior, Marta usa luvas e uma máscara, que a protegem dos níveis altos de toxicidade.



LUCÍLIA MONTEIRO


Ao lado, na oficina, encontramos peças de mobiliário, que são fielmente reparadas por Paulo Magalhães, responsável pelos trabalhos estruturais. Mais alguns passos e, numa outra sala, vemos uma escultura de São Pedro na qual Cristina, uma das mais antigas funcionárias, retoca a fixação da policromia após uma limpeza exaustiva.

De forma imponente, encontramos suspensa uma pintura de rolo (representação da Última Ceia), também a ser intervencionada e que em breve regressará para um trono de altar. “Em Portugal há uma enorme quantidade de pinturas com esta tipologia e em termos de conservação da pintura, tecnicamente falando, é um desafio”, salientou Carla Felizardo.

LUCÍLIA MONTEIRO

ENVERNIZAR O MUNDO E RADIOGRAFAR A ARTE



Mais à frente, dispostos sobre uma enorme mesa encontram-se mais de 30 tocheiros em talha dourada e, ao lado, dois globos de grandes dimensões, do início do século XX e pertencentes à Associação Comercial do Porto, estão a ser envernizados por Joana, que após terminar o curso começou a trabalhar no Centro de Conservação e Restauro


Todo o processo de intervenção é devidamente documentado através de fotografias de luz visível, de fluorescência ultravioleta, com fotografias e refletografias de infravermelhos e ainda com o uso de raio X. “Consegue-se perceber questões de patologias, mas também de execução. É um contributo para a História de Arte e mesmo a nível de intervenção de restauro ajuda imenso”, destacou Carla Felizardo.


Para a diretora do CCR, a área da Conservação e Restauro é ainda pouco apoiada e entendida em Portugal. “Há uma expectativa de que o restauro ponha aquelas peças como novas. Coloridas e brilhantes para a festa. Mas restauro não é sinónimo de colocar como novo. Há valores que se perdem, além do estético. Há valores históricos e artísticos que também têm de ser preservados”, frisa. 

Laura Castro defende que esta é uma área que “poderia empregar muita gente por gerar, com muita frequência, pequenos negócios em redor”, mas admite que a universidade tem de se ajustar à realidade do mercado de trabalho, razão que leva a que, anualmente, apenas se abrem14 vagas para o curso de Conservação e Restauro. 

A responsável adiantou que até ao final deste ano letivo ou início do próximo a Escola das Artes passará a ter um espaço de exposição para alguns projetos desenvolvidos no centro, aberto também a trabalhos de artistas exteriores.


LUCÍLIA MONTEIRO (foto)

Texto de: ANDRÉ MANUEL CORREIA

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